Agarrar o tempo...

Agarrar o tempo...

Ando abraçado à felicidade, embora, no fundo me sinta a remar contra a maré, num momento de contraste com os tempos de infelicidade para a humanidade. Os ventos do diabo sopram de todos os lados, mas felizmente ando extremamente feliz e com a alma a sorrir. Apenas a noite é difícil, a pior parte do dia e o pouco que durmo agarro com todas as forças o travesseiro como se ele fosse um tigre, para não ser devorado.
Meia-noite e como habitualmente, começo com uma página em branco, onde os dedos impregnados de tinta fluorescente batem incessantemente nas teclas, desenhando conversas para matar diálogos descabidos.
Pela janela, do lado de fora, está um relógio, cujos ponteiros marcam passo num tic-tac assombroso. O ponteiro dos minutos circula à rapidez dum caracol e o ponteiro das horas com a lentidão de um míssil hipersónico. Deixo-me aspirar pelo imaginário numa locomoção intemporal do antes e do depois, do passado e do futuro, porque o presente não existe. Já a poetisa polaca Wislawa Szymborska, prémio Nobel da literatura e considerada por muitos, o Mozart dos poetas, dizia: “quando escrevo a palavra futuro, algumas sílabas já pertencem ao passado”. Talvez por isso goste de falar do passado, nem que seja a correr velozmente em círculos sobre um relógio, mesmo sabendo que a espera pela inspiração possa ser demorada. Sou um falso calmo, tranquilo numa aparência enganadora e revendo tudo que gira à minha volta, vislumbro muitos espantalhos ao vento a chorar compulsivamente com as bandeiras patrióticas rasgadas. 
Não consigo desvendar o segredo do cálice Santo Graal, o tal da felicidade eterna, nem descobrir os ecos da pedra filosofal, mas nada disso impede de perceber os tempos vindouros. Os passados, foram de pandemia dos pandemónios e agora horas dramáticas duma guerra em carne viva, onde os crimes hediondos não param impostos pela miséria distópica da inteligência dum ditador. Vivemos tempos de conversas ridículas, assentes num ping-pong de línguas podres impregnadas de ódios. São monopólios dos ricos com diplomas e medalhas de calhordas, enquanto matam os pobres com bombas sanguinárias. Não bastava tudo isso, ainda surge a inflação galopante, desculpada pela guerra como se ela não fosse erro dos governantes e que deixam o povo com indignações estúpidas.
Deixo o tempo passar, viajo ao luar em balões voadores, não tenho as meias rotas, mas sinto no ar o cheiro nauseabundo dos sovacos dos prematuros heróis da sociedade. Parece que estou num intervalo dum filme, onde os atores são macabros e soltam constantemente palavras como se fossem papagaios falantes donos da verdade.
Talvez seja melhor terminar por aqui, não vá haver na noite espiões à escuta.
Cruzes canhoto, sapo-jururu, porventura já falei demais, quando era apenas para agarrar o tempo.

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